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ESCOLA ZÉ PEÃO - alfabetização nos canteiros de obras

Há mais de duas décadas, o Projeto Escola Zé Peão leva alfabetização e educação continuada para operários da construção civil. Criado em 1990, o projeto já atendeu cerca de 5 mil alunos em diversos canteiros de obras de João Pessoa. Além de ser importante na vida dos trabalhadores da construção civil, o projeto é uma experiência pedagógica interessante para estudantes que atuarão como educadores.
publicado: 25/10/2017 19h59, última modificação: 04/05/2018 19h12

Há mais de duas décadas, o Projeto Escola Zé Peão leva alfabetização e educação continuada para operários da construção civil. Criado em 1990, através de parceria entre a UFPB e o Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias da Construção e do Mobiliário de João Pessoa (Sintricom), já atendeu cerca de 5 mil alunos e ajudou a formar em torno de 250 educadores.

A ideia do projeto veio da constatação de que a maioria dos trabalhadores tinha baixa escolaridade, e muitos não eram alfabetizados. As aulas acontecem de segunda a quinta-feira, durante a noite e no próprio canteiro de obras, para facilitar o acesso dos trabalhadores, já que muitos deles moram em cidades do interior da Paraíba e passam a semana no emprego. 

A Escola Zé Peão atua com quatro objetivos principais: o primeiro deles é contribuir para a educação e ser “uma escola especialmente pensada para o operário”, como afirma Timothy Denis Ireland, coordenador do projeto e professor do Departamento de Metodologia da Educação (DME) da UFPB. 

Em seguida, vem o desejo de aproveitar essa experiência para formar estudantes educadores de jovens e adultos, já que as aulas são ministradas por alunos de diversos cursos de licenciatura da UFPB. Antes de entrar no projeto, eles passam por uma formação especial que dura um mês e seguem sendo acompanhados durante as ações nos canteiros. 

Outra meta é que a ação de extensão sirva como campo para pesquisas acadêmicas. Ela tem contribuído para estudos nas áreas de Educação, Psicologia, Administração, Engenharia de Produção, entre outras. “Tem sido um campo fértil de pesquisa”, destaca Timothy. 

Por meio do trabalho realizado pelo Centro de Educação/UFPB, há também o intuito de ajudar na elaboração de metodologias e material didático para o operário de construção civil. “Nossa perspectiva de educação não é só escolar. Há muitas formas de aprender”, afirma o Coordenador.

Foto 2 - Rafael Freire

 ATIVIDADES

O Zé Peão é formado por vários programas. Entre eles está o Aprendizagem Móvel no Canteiro de Obra (AMCO), que utiliza tablets para ensinar sobre o uso de mídia digital. Já o Programa de Alfabetização em Língua Materna (PALMA), trabalha com um aplicativo para smartphone que auxilia na aprendizagem dos alunos, por meio de atividades interativas. Há também oficinas de arte e um projeto de saúde e educação nutricional que verifica a alimentação dos operários, mede a pressão arterial, entre outras avaliações.  

Além das aulas, a Escola Zé Peão proporciona outras atividades aos trabalhadores: visita ao campus da Universidade Federal da Paraíba e à Biblioteca Central, ao planetário do Espaço Cultural, ao cinema, a exposições. Timothy fala ainda sobre a importância do convênio entre a Universidade e o Sintricom para a existência da iniciativa. “Essa parceria não é apenas uma formalidade. O sindicato tem contribuído muito para a escola, tanto em termos de discussão sobre conteúdos e metodologias, como também conversando e convencendo os operários. E também tem contribuído financeiramente. ”

HISTÓRIAS

O canteiro de uma grande construtora da capital paraibana, localizado no bairro do Altiplano, é um dos locais onde as aulas acontecem. Lá, 16 operários participam do projeto. A turma tem duas professoras para auxiliar as pessoas com diferentes níveis de conhecimento. Na sala de aula, as cadeiras são organizadas em forma de círculo, o que deixa o ambiente mais propício para interação entre as educadoras e os alunos. 

Cada operário tem uma história diferente para contar, mas todos possuem o mesmo objetivo: recuperar o tempo perdido no passado, quando alguma dificuldade os fez interromper os estudos. 

José Roberto da Silva, de 38 anos, veio para a escola Zé Peão através do incentivo de dois colegas que já participavam do projeto. Nascido em uma família com 15 filhos e morando em Itabaiana - PB, onde a escola era muito longe de casa, ele começou a estudar pela primeira vez aos 16 anos, mas logo teve que parar para trabalhar na roça ajudando o pai. Ao ser perguntado sobre qual matéria ele mais tem gostado de estudar no Zé Peão, não teve dúvidas e logo respondeu: “Matemática”. José diz com convicção que não pretende faltar a nenhum dia de aula e acrescenta: “É muito bom aprender, para fazer as coisas que não fiz antes”.

Foto 3 - Rafael Freire

Cid Moreira Alves, de 31 anos, veio da cidade de Aparecida, no Sertão da Paraíba. Ele estudou apenas até a oitava série. Aos 22 anos, começou a fazer supletivo, mas depois desistiu. Para ele, o projeto Zé Peão tem ajudado a resgatar conteúdos que não via há muito tempo. “Na Matemática, tem contas que você nunca faz trabalhando e aqui a gente relembra”. 

Para o operário Rosinaldo Martins, de 32 anos, ter duas educadoras dando aula ao mesmo tempo facilita bastante, pois cada uma se dedica a um nível de aprendizado. Ele conta que já aprendeu muito e pretende continuar participando do projeto.  

Severino da Silva, de 49 anos, contou que quando era criança, se mudava de cidade frequentemente e isso atrapalhou muito seus estudos. “Eu entrava na escola, estudava um mês ou dois, mas depois tinha que sair”. Por conta disso, aprendeu apenas a escrever o próprio nome. Agora, participando do projeto há dois meses, faz questão de frequentar todas as aulas. 

As histórias dos operários do canteiro são muitas. Nascido na cidade paraibana de Riachão do Bacamarte, Petrônio Batista de França começou a estudar só aos 16 anos, porque tinha que trabalhar na agricultura. Ele parou na quinta série. “Quando completei a maioridade, fui trabalhar fora e a escola ficou pra trás”. Petrônio lê com dificuldade e conta por que chegou ao projeto. “Não é fácil pra gente voltar a estudar, devido a nossa jornada de trabalho. A gente trabalha bastante, acorda às seis da manhã e trabalha até as 18 horas, mas devido à vontade que eu tenho de escrever e ler melhor, estou aqui”.

IMPORTÂNCIA

O projeto tem contribuído também para a formação dos educadores envolvidos. Flávia Serpa, estudante de Língua Espanhola, é professora da Escola desde 2016 e conta como tem sido sua experiência. “O programa indiscutivelmente é feito de amor à docência. Participar do Programa Escola Zé Peão é sem dúvidas um divisor de água na nossa carreira docente”, enfatiza Flávia.

Ainda segundo a educadora, o programa de extensão tem como diferencial a formação continuada. Todo processo educativo de planejamento e preparação de conteúdos é feito em equipe. “Nós, educadores e professores, trabalhamos em conjunto com o objetivo maior de que os alunos possam ter uma aprendizagem realmente significativa e ao mesmo tempo nós nos aperfeiçoamos como educadores”, conta Flávia. 

Gessica Mayara de Oliveira Souza também é educadora do projeto. Ela está no oitavo período do curso de Pedagogia e conta que a participação na Escola Zé Peão está ajudando na sua experiência em educação de jovens e adultos (EJA), já que o tema ainda é pouco abordado no curso. Sobre a experiência como educadora, declara: “É muito desafiador, porque é uma responsabilidade muito grande, tanto preparar o que vai passar pra eles como a forma como vai passar”. 

O programa Zé Peão tem alcançado reconhecimento nacional e internacional. Em 2008, ele foi apresentado no Encontro Regional da América Latina e do Caribe, na Cidade do México. Ano passado (2016), recebeu uma menção honrosa concedida pela Biblioteca do Congresso Nacional dos Estados Unidos. “Mas acho que o mais importante são os depoimentos dos professores e alunos que participaram”, revela Timothy Ireland ao falar sobre o reconhecimento do projeto. 

No entanto, o maior reconhecimento para o Zé Peão, por ser aceito pelos trabalhadores, é representar para eles um espaço democrático para adquirir o conhecimento e a educação a que não tiveram acesso na infância.


* Reportagem de Lucélia Pereira - Bolsista PRAC (2017)